A Lei 14.874, que dispõe sobre a pesquisa com seres humanos e institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos traz aspectos específicos a serem observados quanto ao fornecimento da medicação experimental pós ensaio clínico. Com muitos pontos a serem devidamente regulados, espera-se que uma norma específica da INAEP – Instância Nacional de Ética em Pesquisa traga diretrizes complementares para elaboração, apresentação e análise ética desses programas.
A ACESSE tem como seus principais pilares a proteção e a promoção dos interesses do participante de pesquisa, a qualificação dos centros e o fomento do ecossistema da pesquisa clínica no país.
Assim, esta carta orientativa tem como fundamento a Lei 14.874/2024 e nos conceitos da Bioética Principialista e visa tecer os principais pontos para a tomada de decisão clínica do(a) Pesquisador(a).
Responsabilidade do patrocinador e Acesso pós-ensaio clínico
O que muda?
O patrocinador continua responsável pelo acesso pós-ensaio clínico no que diz respeito aos cuidados médicos emergenciais e compensação por danos diretamente relacionados à participação no programa, mas agora há critérios mais objetivos para a avaliação do(a) pesquisador(a) sobre a necessidade de migrar o participante para um programa de fornecimento pós-ensaio clínico.
Ao término do ensaio clínico, deverá ser realizada, individualmente, avaliação sobre a necessidade de continuidade do tratamento experimental para cada participante. Dito isso, segundo o art. 32 da Lei nº 14.874/2024:
Art. 32. A avaliação sobre a necessidade de continuidade do fornecimento do medicamento experimental pós-ensaio clínico deverá ser realizada de acordo com os seguintes critérios:
I – a gravidade da doença e sua ameaça à continuidade da vida do participante;
II – a disponibilidade de alternativas terapêuticas satisfatórias para o tratamento do participante da pesquisa, considerada sua localidade;
III – se o medicamento experimental contempla uma necessidade clínica não atendida;
IV – se a evidência de benefício para o participante supera a de risco com o uso do medicamento experimental.
O que fazer?
Recomenda-se que contratos de pesquisa clínica com patrocinadores e termos de consentimento livre e esclarecido (TCLE) reflitam as regras previstas na lei quanto à migração do participante para um programa pós-ensaio clínico, tais como critérios de necessidade e critérios de interrupção, quando aplicáveis. Além disso, tais instrumentos devem prever disposições jurídicas para assegurar o(a) pesquisador(a) e o centro de pesquisa clínica, notadamente no que diz respeito à responsabilidade civil.
Para isso, recomenda-se buscar apoio jurídico para auxiliar na revisão técnica e adequada do contrato de pesquisa clínica e do TCLE. Se necessário, e se for do interesse, a ACESSE pode sugerir especialistas para prestar serviços advocatícios nesse sentido.
Necessidades de regulamentação
Conforme o art. 36 da lei, o uso de medicamento experimental durante programa de fornecimento pós-ensaio clínico obedecerá às normas estabelecidas em regulamento.
Entende-se que o regulamento ainda será ditado pela Instância Nacional de Ética em Pesquisa (INAEP). Enquanto isso, orienta-se que a inclusão do participante no programa de fornecimento pós-ensaio clínico deve ser cuidadosamente avaliada pelo(a) pesquisador(a) e pelos centros de pesquisa, observando os seguintes critérios, além dos critérios legais acima dispostos:
- FASE DA PESQUISA:
Fases I e II – Há justificativa e embasamento científico mínimo em relação à segurança para fornecimento pós estudo sem os resultados da fase III (que avalia especificamente segurança e eficácia)?
Fase III – os resultados de segurança e eficácia do estudo já estão disponíveis para embasar a indicação clínica?
- INDICAÇÃO TERAPÊUTICA:
Patologias Agudas: entendemos que, de forma geral, não há necessidade de fornecimento pós-ensaio clínico, visto que o participante recebe o tratamento para a patologia em questão até a melhora significativa, cura, ou falha terapêutica. Em ambos os casos pode ser que migrar o participante para o programa de fornecimento pós-ensaio clínico não seja o clinicamente recomendado.
Patologias Crônicas: Avaliar a gravidade da patologia, quais as opções terapêuticas disponíveis no mercado, o risco benefício de oferecer um tratamento ainda em fase de experimentação versus medicamentos já disponíveis no mercado com perfil de segurança e eficácia mais robusto e registrados junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Em qualquer caso, ressalta-se que o(a) pesquisador(a) detém a atribuição de tomar as decisões clínicas. Cabe a ele(a) a decisão médica, dentro de sua convicção clínica.
- TIPO DE DELINEAMENTO E CEGAMENTO DO ENSAIO CLÍNICO, TERAPIA COMPARADORA
Em casos de ensaios clínicos com cegamento (simples cego, duplo cego, etc), deve-se aguardar a abertura do código para tomar a decisão de migrar o participante ou não para o programa de fornecimento pós-ensaio clínico. Não é possível indicar a migração para o programa sem antes ter-se o conhecimento de seu braço de tratamento e antes do encerramento definitivo do estudo. Além disso, é crucial avaliar como será a decisão de fornecimento para pacientes que receberam o placebo ou comparador. Quais os riscos, benefícios e embasamento científico para fornecer o medicamento experimental para o participante que estava no grupo controle?
Segundo a Lei nº 14.874/2024:
Art. 31. Ao término do ensaio clínico, deverá ser realizada, individualmente, avaliação sobre a necessidade de continuidade do tratamento experimental para cada participante.
§ 1º A avaliação a que se refere o caput deste artigo será realizada pelo pesquisador, ouvidos o patrocinador e o participante da pesquisa, nos termos de regulamento.
§ 2º O fornecimento gratuito pós-ensaio clínico do medicamento experimental deverá ser realizado sempre que este for considerado a melhor terapia ou tratamento para a condição clínica do participante da pesquisa e apresentar relação risco-benefício mais favorável em comparação com os demais tratamentos disponíveis.
§ 3º O fornecimento gratuito pós-ensaio clínico do medicamento experimental, quando necessário, será garantido após o término da participação individual por meio de programa de fornecimento pós-estudo, para o qual o participante deverá migrar automaticamente.
- Processo de Administração da Terapia EXPERIMENTAL
Recomenda-se que o centro de pesquisa realize a avaliação de custos e estabeleça a política de fornecimento para tratamentos infusionais e/ ou que necessitem de hospitalização / acompanhamento especial para administração.
Indicar quais custos serão cobertos pelo patrocinador, centro de pesquisa, e se haverá custos a serem arcados pelo participante ( plano de saúde, SUS, etc.). Esse é um aspecto primordial para a viabilidade do programa de fornecimento pós estudo e não pode ser negligenciado e nem definido apenas após a solicitação ao patrocinador. Observa-se que caso haja o programa de fornecimento pós-ensaio clínico o patrocinador vai solicitar a celebração de contrato de fornecimento pós ensaio-clínico, ou Post-Trial-Agreement (PTA).
Preferencialmente, esses aspectos podem ser discutidos durante a visita de seleção, quando os processos de administração do produto investigacional são apresentados.
- Política de não interrupção do tratamento EXPERIMENTAL até o programa de fornecimento ser iniciado
O período de tempo transcorrido entre a visita de final de tratamento e o início do fornecimento pós estudo deve ser considerado, evitando a interrupção do tratamento e eventuais riscos ao participante. Essa decisão dificilmente poderá ser tomada antes da publicação dos resultados do estudo. Dessa forma, um estudo de extensão até o efetivo recebimento do fornecimento pós estudo deve ser considerado (quando aplicável), para garantir a segurança do participante.
Nesse sentido, a Lei nº 14.874/2024 determina que:
Art. 34. O pesquisador será responsável por solicitar ao patrocinador o início do fornecimento pós-ensaio clínico do medicamento experimental ao participante da pesquisa, conforme critérios definidos nesta Lei.
§ 1º O patrocinador garantirá aos participantes da pesquisa o fornecimento gratuito pós-ensaio clínico do medicamento experimental sempre que este for considerado pelo pesquisador como a melhor terapêutica para a condição clínica do participante da pesquisa e apresentar relação risco-benefício mais favorável em comparação com os demais tratamentos disponíveis, nos termos desta Lei e de regulamento.
§ 2º O fornecimento gratuito pós-estudo do medicamento experimental de que trata o § 1º deste artigo será garantido após o término da participação individual, por meio de programa de acesso pós-estudo, e o participante deverá migrar automaticamente para esse novo protocolo.
§ 3º Para atender ao disposto neste artigo, a importação e a dispensação de medicamento experimental durante o programa de acesso pós-estudo deverão ser previamente autorizadas pela autoridade sanitária competente, nos termos de regulamento.
- Critérios de inclusão para A MIGRAÇÃO DO PARTICIPANTE PARA o programa de fornecimento DA MEDICAÇÃO EXPERIMENTAL pós-ENSAIO CLÍNICO
Além dos critérios clínicos, o participante deve também ter o compromisso para entrar em um programa de fornecimento pós estudo. Ele deve ter sido aderente e engajado durante o projeto, com facilidade de comunicação e demonstrar a possibilidade de continuar com avaliações e exames de segurança que não serão mais realizados pelo estudo.
Ainda, a adequada aderência do participante (ou a falta dela) deve ser sempre indicada em prontuário, visando auxiliar o processo de decisão. Participantes não aderentes e/ou faltantes não devem ser considerados para programas de fornecimento pós estudo, visando a sua própria segurança.
- Plano de avaliação de Segurança, continuidade e interrupção
Através de critérios médicos, deve ser estabelecida com o participante a periodicidade das reavaliações assim como os exames de acompanhamento a serem realizados para análise periódica da continuidade do tratamento. Assim como os tipos exames de segurança, os custos desses exames devem ser calculados e organizados com o paciente e patrocinador. Observa-se que o patrocinador geralmente não custeia exames e procedimentos para a avaliação clínica do participante de programa de fornecimento pós-ensaio clínico. Tampouco a lei proíbe que, nestes casos, o participante custeie a avaliação clínica pelo plano de saúde e, caso não haja, pela assistência habitual que ele tem na Atenção Primária e Especializada do Sistema Único de Saúde.
O Centro de pesquisa deve manter um profissional farmacêutico habilitado para fazer o controle, dispensação, armazenamento e entrega do medicamento experimental ao participante do programa.
O custeio dessas despesas deve ser avaliado em conjunto com o participante, centro e patrocinador para o melhor alinhamento e previsibilidade para todas as partes envolvidas .
Os riscos e benefícios clínicos devem ser sempre observados durante o processo de fornecimento pós ensaio clínico da medicação experimental. Ainda em caso de falta de aderência por parte do participante, falta do devido acompanhamento de segurança (seja absenteísmo em consultas ou falta de exames necessários), a interrupção do programa deve ser avaliada (mais uma vez, sempre priorizando a segurança do participante) junto ao mesmo e ao CEP que avaliou o estudo.
Reforça-se que a responsabilidade clínica é do pesquisador(a) e cabe a ele(a) manter o participante engajado e clinicamente avaliado sobre os riscos e benefícios de continuar no programa de fornecimento pós-ensaio clínico.
Caso algum critério de interrupção do programa seja enquadrado, a lei determina o seguinte:
Art. 33. O fornecimento gratuito do medicamento experimental no âmbito do programa de fornecimento pós-estudo poderá ser interrompido, mediante submissão de justificativa ao CEP, para apreciação, apenas em alguma das seguintes situações:
I – decisão do próprio participante da pesquisa ou, quando esse não puder expressar validamente sua vontade, pelos critérios especificados no art. 18 desta Lei;
II – cura da doença ou agravo à saúde, alvos do ensaio clínico, ou introdução de alternativa terapêutica satisfatória, fato devidamente documentado pelo pesquisador;
III – ausência de benefício do uso continuado do medicamento experimental ao participante da pesquisa, considerada a relação risco-benefício fora do contexto do ensaio clínico ou o aparecimento de novas evidências de riscos relativos ao perfil de segurança do medicamento experimental, fato devidamente documentado pelo pesquisador;
IV – ocorrência de reação adversa que, a critério do pesquisador, inviabilize a continuidade do medicamento experimental, mesmo diante de eventuais benefícios;
V – impossibilidade de obtenção ou de fabricação do medicamento experimental por questões técnicas ou de segurança, devidamente justificadas, e desde que o patrocinador forneça alternativa terapêutica equivalente ou superior existente no mercado;
VI – transcurso do prazo de 5 (cinco) anos, contado da disponibilidade comercial do medicamento experimental no País;
VI – transcurso do prazo de 5 (cinco) anos, contado da disponibilidade comercial do medicamento experimental no País;
VII – disponibilidade do medicamento experimental na rede pública de saúde.
A ACESSE entende e defende que a incidência de qualquer critério de interrupção deve ser justificada e apresentada ao CEP.
A Bioética Principialista:
Os conceitos bioéticos na pesquisa clínica são sempre: Beneficência, Não maleficência, Autonomia e Justiça.
Beneficência: Refere-se à obrigação moral de agir em benefício do outro. Assim, benefícios pela participação na pesquisa devem sempre estar acima dos riscos. Deve-se ainda ter a obrigação de ajudar outras pessoas promovendo seus interesses legítimos e importantes. 1
Não maleficência: o conceito está associado com a máxima “primum non nocere” (acima de tudo, ou antes de tudo, não causar dano). Há a obrigação de não infligir dano intencionalmente.1
Autonomia: é a autodeterminação do paciente. A capacidade de decidir intencionalmente, com entendimento e sem influências controladoras que determinem sua ação autônoma.1
Justiça: É o retorno dos benefícios da pesquisa aos seus participantes. Na realidade da pesquisa em seres humanos, pode ser entendido como o conceito da equidade, com cada paciente e participante sendo tratado de acordo com as suas necessidades individuais.1
Assim, um programa de fornecimento da medicação experimental pós ensaio clínico deve observar a todos esses princípios, e o Brasil é pioneiro nos processos de fornecimento como forma de garantir a equidade e retorno dos benefícios aos participantes.
Quando realizado dentro de processos de segurança controlados, é essencial para a correta observação dos conceitos bioéticos. Porém, entender o conceito de justiça e consequente retorno dos benefícios obrigatoriamente com fornecimento pós ensaio clínico, sem considerar todos os pontos citados anteriormente, pode não gerar as garantias e melhores interesses dos participantes.
Considerações Finais:
A decisão pelo programa de fornecimento de medicação experimental pós ensaio clínico é totalmente projetada no médico investigador, que deve entender as responsabilidades e custos cobertos e não cobertos pelo programa. Ainda, nunca deve ser utilizado como forma de indução (indevida) à entrada do participante na pesquisa e sim como retorno dos benefícios a ele.
Também, deve ser claramente discutido e detalhado pelo médico investigador, centro de pesquisa e Patrocinador de forma antecipada . O diálogo e correto entendimento das necessidades e desafios de ambos os atores são necessários para garantir a previsibilidade de custos, processos, riscos e principalmente, os melhores interesses dos participantes.
Referências Bibliográficas
BRASIL. Lei nº 14.874, de 28 de maio de 2024. Dispõe sobre a pesquisa com seres humanos e institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 28 de Maio de 2024. Disponível em: www2.camara.leg.br Acesso em: 24 nov. 2025.
BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Princípios de Ética Biomédica. São Paulo: Edições Loyola, 2002.


